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Falta regulamentação para “atos corruptos” em Estados e municípios.
Após um ano e meio de atraso, o Governo Federal editou o Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, que regulamenta a Lei 12.846/13, mais conhecida como Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa. O Decreto, gestado durante a crise do governo com a operação Lava Jato, é um instrumento jurídico apto a dar suporte à instauração dos procedimentos administrativos, no âmbito federal, de responsabilização administrativa das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional ou estrangeira.
No entanto, a estrutura sustentada pela Lei Anticorrupção, em que o poder de instaurar e julgar o processo administrativo de responsabilização foi atribuído para a autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, criou, sem sombra de dúvidas, um verdadeiro “buraco negro” quando o ato corrupto envolvendo empresas e governo ocorrer nos limites dos Estados ou dos municípios, principalmente no âmbito municipal. Estados e municípios podem, observadas as suas competências, definir quais serão as autoridades máximas de cada órgão ou entidade, bem como os procedimentos para celebração dos acordos de leniência e o rito processual do Processo Administrativo de Responsabilização (PAR).
Entretanto, há imensa dificuldade ou mesmo falta de vontade política de alguns Estados e da grande maioria dos municípios em regulamentar a citada Lei, diante da inexistência de quaisquer estruturas, mínimas que sejam, para albergar os procedimentos de investigação e punição das empresas corruptas. Parece que, ressalvadas estas questões que decorrem do sistema de competências criado pela lei, o melhor modelo a ser seguido é o que foi adotado pelo município de São Paulo (que já havia editado a sua regulamentação em maio de 2014), que fixou competência exclusiva, para instauração e processamento do PAR e para a celebração dos acordos de leniência em um único órgão – a Controladoria-Geral do Município (CGM). Este sistema centralizado permite uma padronização dos procedimentos vinculados ao PAR e aos acordos de leniência, com ganhos de eficiência e transparência.
No que se refere à aplicação das penalidades às empresas corruptas, o Decreto 8.420 estipula um sistema de dosimetria das multas, balizado em percentuais sobre o faturamento bruto no último exercício anterior ao da instauração do Processo, excluídos os tributos. O valor final da multa a ser aplicada à empresa, assim, decorrerá do resultado da soma e da subtração de diversos percentuais, que incidem sobre o seu faturamento bruto, conforme forem determinadas, no caso concreto, a existência de agravantes (soma) ou atenuantes (subtração).
De toda a forma, o piso da multa será o maior valor entre a vantagem auferida e 0,1% do faturamento bruto, excluídos os tributos, e o teto o menor valor entre 20% do faturamento bruto, excluídos os tributos e três vezes o valor da vantagem pretendida ou auferida. Outro ponto que merece destaque é o estabelecimento dos critérios pelos quais se reputa existente, numa organização empresarial, um programa de integridade ou compliance, definido pelo próprio Decreto como um conjunto de mecanismos e procedimentos de integridade, auditoria, aplicação de códigos de ética e conduta e incentivos de denúncia de irregularidades.
Este programa, que deve ser aplicado e estruturado de acordo com as características próprias da empresa, representa importante atenuante na aplicação das multas, podendo resultar num redutor de percentual variável entre 1% a 4% do faturamento bruto da empresa, se houver efetiva comprovação de sua existência e aplicação. A avaliação da consistência e aplicação do programa de integridade demanda, assim, a verificação de uma série de parâmetros, descritos pormenorizadamente no Decreto (artigo 42 e incisos), sempre em função do porte e especificidades da pessoa jurídica, reduzindo-se algumas das formalidades que o circundam, no caso de micro e pequenas empresas.
Outro ponto fulcral do Decreto diz respeito aos acordos de leniência pelas empresas envolvidas em investigação por atos corruptos. Para firmar tais acordos, a empresa deverá ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo específico, quando tal circunstância for relevante; ter cessado completamente seu envolvimento no ato lesivo a partir da data da propositura do acordo; admitir sua participação na infração administrativa; cooperar plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo e comparecer, sob suas expensas e sempre que solicitada, aos atos processuais, até o seu encerramento; e fornecer informações, documentos e elementos que comprovem a infração administrativa.
No âmbito do Poder Executivo Federal e nos casos de atos lesivos contra a administração pública estrangeira, a competência para celebrar acordos de leniência é exclusiva da Controladoria-Geral da União (CGU). A empresa que firma e cumpre o acordo de leniência pode ter como benefícios: isenção da publicação extraordinária da decisão administrativa sancionadora e também da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos públicos e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo Poder Público; redução do valor final da multa aplicável; isenção ou atenuação das sanções administrativas previstas na Lei 8.666/93, ou de outras normas de licitações e contratos.
Porém, a Lei e o Decreto ainda não resolvem a questão mais fundamental sobre os acordos de leniência (extremamente novo em nosso direito) e a insegurança jurídica relacionada à multiplicidade de jurisdições e competências concorrentes em nosso complexo sistema federativo. Por exemplo, no caso de violações à Lei através de atos cuja lesão se reflita na órbita de autoridades estaduais e federais, a empresa deverá celebrar o acordo de leniência com qual autoridade? E, se firmado este acordo, qual segurança essa empresa terá de que a outra autoridade, que não o firmou, irá observá-lo ou respeitá-lo?
Como se pode ver, a Lei 12.846/13 e o Decreto 8.420/15 apenas inauguram um cenário jurídico de combate à corrupção nas relações entre o governo e as empresas. O conjunto, é claro, não é harmonioso. Sob o ponto de vista jurídico, deverá ser complementado pelo esforço da doutrina e da jurisprudência e de muitos ajustes legislativos, como é, infelizmente, da tradição brasileira. Todavia, é um começo. E um início válido. O que não se pode supor é que as referidas normas serão a panaceia para todos os males ligados à corrupção empresarial. Não sejamos inocentes ou tolos supondo que, se vigentes anteriormente à corrupção denunciada e tornada pública na Operação Lava Jato, a referida Lei e o comentado Decreto seriam instrumentos suficientes para impedir a sociedade que se firmou entre vários partidos políticos e o cartel de empreiteiros, responsável por conduzir nossa maior empresa à bancarrota.
A única forma efetiva de dar cabo a este mal, ou melhor, ao vírus que contaminou as entranhas de nosso país e que o levará, certamente, ao cenário mais sombrio dos últimos trinta anos, é retirar do poder esta camarilha que lá se instalou. É óbvio que pelas formas democráticas e legais postas na Constituição da República, dentre as quais emerge o impeachment da chefe (ou seria chefa?) do Executivo. Este, sim, seria um ótimo recomeço.
*David Gonçalves de Andrade Silva é sócio-diretor do escritório Andrade Silva Advogados.
Fonte: Revista Amanhã / Portal Contábeis